Caminho II

 

Talvez pela proximidade do 'evento do século' por cuja oportunidade de ver desbaratados os nossos impostos devemos estar muito agradecidos este ano o mês de Maio, o mês de Maria, tenha tão larga cobertura noticiosa.
As peregrinações, os peregrinos, a biografia dos videntes, as ficções produzidas para o cinema inspiradas em Fátima... está tudo lá, esmiuçado.
No entanto, compara mal o sacrifício dos atuais peregrinos nos seus sapatos técnicos, meias de compressão, dormidas organizadas, tecnologias, porco no espeto... com a imagem dos peregrinos dos anos 50, 60 do século XX. Compara mal com as senhoras, analfabetas, velhinhas, frágeis, vestidas de preto, que nunca usavam sapatos e só trocavam os chinelos gastos do dia-a-dia por outros, igualmente gastos, de verniz para ir à missa. Compara mal com as senhoras que ainda conhecemos nos anos 80, 90. Com elas e com as suas histórias de caminhada até Fátima.
Saíam de madrugada sem GPS, sem telemóvel, sem saber se encontrariam algum telefone para chamar para a venda a deixar recado. Às mais experientes juntava-se um grupo de caminheiros em primeira viajem. Para além da roupa do corpo e dos chinelos com sola de madeira feitos pelo sapateiro local levavam algum dinheiro cuidadosamente preso no elástico das cuecas ou num pequeno bolso feito de propósito na combinação preso com uma segurança e um pequeno saco transportado à cabeça. No saco pouco mais do que uma manta, um par de caturnos secos, uma roupa interior lavada e o terço. Todos os dias rezavam o terço, várias vezes.
Para comer levavam um pedaço de broa e uma chouriça, com o dinheiro fariam o resto das refeições à medida que os estabelecimentos fossem aparecendo o que às vezes tardava mas quando apareciam qualquer patanisca sabia a marisco mesmo que de bacalhau só tivesse o cheiro. Pediam água pelo caminho. Ninguém lhes negava uma pinguinha e aproveitando a generosidade negociavam a pernoita num palheiro ou numa corte junto dos animais. O cheiro era horrível mas era o melhor quando chovia e os animais serviam de despertador. Não havia bailaricos nem pessoas as oferecer chocolates como há agora mas também riam. Riam das anedotas repetidas vezes sem conta ou dos roncos e tropeções de cada um. 

Compara mal o sacrifício mas o propósito aparentemente mantém-se assim como a fé que na chegada a Fátima une os peregrinos todos, os de agora e os de então.

Comentários