No caminho dos outros

 

Já não há burros que nos carreguem no percurso até à Quinta de Vila Nova. 

Seriam úteis, apesar de o caminho não ser muito longo é demasiado longo para o pouco que estamos habituados a andar. Seriam tão úteis como devem ter sido ao Jacinto quando percorreu pela primeira vez o caminho que hoje tem o seu nome e pelo mesmo motivo, o sermos demasiado urbanos para isto.

‘Aregos’, lembro-me de em miúdos esperarmos ansiosos pela próxima estação, prontos a exibir as habilidades de leitura e acharmos muita piada aos nomes, cada um mais estranho do que o outro. Os nomes das estações na direção inversa não suscitavam tanta gargalhada. Caldas de Aregos, Caldas de Canaveses…gostava quando me diziam que ali eram as caldas. As termas remetiam-me para senhoras de vestidos longos, chapéus e sombrinhas... Influencia das séries inglesas que passavam na televisão.

Sente-se a falta de gente nas ruas. As poucas que se vêem entretêm-se nos quintais, tentam contrariar a seca. - Ao preço a que as coisas estão não vale a pena ter o trabalho de plantar sem saber se vão vingar… Mas as flores, não quero que morram. Aquelas miudinhas, cor-de-rosa, costumam abrir nos Santos vamos ver se este ano também abrem, se não vou ter que comprar, mas ao preço que estão as flores quem é que pode?

Os Santos, esse feriado que tomou conta do Dia de Finados que, por sua vez, toma conta do sossego das mulheres mais velhas e dos viúvos a partir de Setembro. Todo o ano, o cemitério, as campas, as flores, as velas… lhes ocupam a tarde de sexta-feira ou a manhã de sábado, mas a partir de Setembro a preocupação dobra. Há uma relação de dependência muito íntima nas pessoas do Norte para com os seus mortos. Algumas pessoas cuidam mais dos seus depois de mortos do que quando eram vivos. Algumas relações ficam mais sólidas.

– E, ela passou a tarde no cemitério?

– Então? Se é lá que o home está. Ela fazia anos de casada e queria passar a tarde com ele…

 – Levou uma cadeira e um guarda-sol…

- E passou lá a tarde com um Tupperware de bolinhos de bacalhau…

Recordo--me do espanto que contrastava com a normalidade da minha interlocutora. Fazer pouco disto com a argumento ‘são só ossos’, quando se opõem a que lhes levem os restos mortais de algum ente querido para longe, para além de patego porque ‘se são só ossos para que os querem?’ é uma enorme falta de respeito.

As gentes daqui estão, de facto, muito afastadas da fundação, mas a fundação, apesar dos largos parágrafos que lhes dedica nos seus estatutos, também se afastou delas.

Lembram-se de terem tido umas férias, das sessões para as mulheres no mundo rural. Lembram-se de como tudo começou e de como lhes prometeram que ainda vinha muita coisa e que tudo o que vinha era para eles.

Agora, a Fundação está lá e eles estão nas suas casas a cuidar dos quintais, enquanto esperam por um telefonema dos que migraram para a cidade ou emigraram para fora, movimento a que os objetivos de capacitação da população local na génese da Fundação não são alheios. 

A Fundação recebe gentes de fora e eles encaminham-nas para lá.

- Alguns só os percebemos por gestos! Mas eles dizem Eça de Queiroz e nós apontamos. P’ai acima! E eles lá vão… vem muita gente! Diz que tem lá um restaurante que é um luxo…’

O caminho do Jacinto é empedrado e ingreme. 

Sigo por ali acima.

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