A Implicação

 

-Vámoláver, desconfiar, desconfiava de qualquer coisa, mas não era de nada disto… No início, o Padrinho contactava-me amiúde, contava-me as suas conquistas e eu pedia-lhe ajuda para resolver coisas complicadas que me apareciam no serviço,  mas depois eu mudei-me para o palácio e o Padrinho passou a contactar o meu chefe de gabinete, combinavam coisas, só sabia dele quando o meu chefe de gabinete me dizia com ar gozão "o Padrinho mandou-te um abraço".

Pensei em telefonar-lhe, confrontá-lo, mas não queria parecer implicativo. 

Éramos amigos de casa, as nossas famílias faziam férias juntas, não percebia aquele afastamento. Custava-me.

Também nunca confrontei o meu chefe de gabinete, não sou um desses patrões implicativos … confiava nele e dava-lhe liberdade.

Quando o Padrinho começou a aparecer no palácio, com outras pessoas para reunir com o meu chefe de gabinete, fazia por me cruzar com ele e ele nada. Nunca me apresentou às pessoas com quem depois ia almoçar… 

Sentia-me triste, claro que sim. Sentia-me excluído, mas não queria ser implicativo… às vezes, a senhora da portaria do Largo do Rato avisava-me "olhe, sô doutor, está aqui o seu padrinho de casamento" e eu fazia de tudo para chamar a atenção, ser incluído. Uma vez fui a correr trocar de roupa, calcei umas peúgas encarnadas muito bonitas que a minha mulher me deu para combinar com um vestido dela, esperei que ele passasse por mim, imaginei um polegar erguido e um "Porreiro, pá!", mas ele limitou-se a acenar com a cabeça, enquanto encaminhava um bando de estranhos para a minha sala de reuniões. 

O último "Porreiro, pá" que me dispensaram já foi há muito tempo… fazíamos muito isso no nosso grupo de amigos agora, cada um seguiu as suas vidas, cada um com as suas penas e não quero, mesmo, ser o implicativo que cobra atenção.

Certa vez apanhei o Padrinho e o chefe de gabinete muito divertidos, a fazer uns sons graves "pó, pó, pó" pensei que estavam a fazer pouco de mim, da minha maneira de falar, mas não. Estavam a combinar que presente de aniversário iam dar ao Galamba. Já viu, se eu tinha implicado? Aí, é que nunca mais me falavam! 

Se ia ao futebol? Ia, sim senhor, mas só ia por obrigação que eu não gosto de bola.

Lítio? Não sei. Não sei bem o que é, só sei que é um pó quase tão caro como o pó de que o Galamba gosta e os outros dois lhe iam oferecer. 

Se eu soubesse tinha-me afastado deles… eu só queria que fossemos amigos. Nunca tomaria parte numa coisa destas…Nunca! 

As pessoas acham que sou rico, mas é mentira. A minha mulher é uma professorinha pré-reformada, como é que nós vamos viver? As pessoas acham que herdei muito dinheiro do meu avô… o meu avô negociava em canela! Ca-ne-la! Também a vendia em pó, mas era pó para os pobres usarem em dias de festa…


Sim, isto sou eu a imaginar o António Costa sozinho num banco de jardim a ensaiar, para os pombos, o monólogo que vai ter que repetir para o resto da vida.

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